•Leisce•
Por mais que desejemos fazer o bem, muitas vezes fazer algo errado torna-se inevitável. E pior que inevitável, estava tornando-se um vício para mim. Um vício bom, atrativo... Um vício em que eu me sentia poderosa, temerosa... Um vício diferente de todos os outros... Mas um dia você acaba fazendo algo bom. Mesmo que não tenha importância nenhuma pra você.
Mais uma vez eu estava deitada naquela cama de frente para o ambiente monótono do hospital. O Dr. Gruk não aparecia há algum tempo e Katy parecia bem desanimada. Sempre que podia, ela me incentivava a voltar para o orfanato, mas eu não ligava para o que ela queria. Eu precisava ficar ali.
- Bom dia, Rachel! - disse, em seu tom de desânimo.
- E aí, Katy? - tentei, sem sucesso, tornar a conversa agradável.
- Hoje o Dr. Gruk veio ao hospital... - seu olhar era triste e significativo - Ele se demitiu.
- O que? - apesar de estar em sua mente, a notícia estava sendo um choque para mim - Mas por quê?
- Ele não quis dizer muito... Mas parece que ele não está se sentindo bem aqui... Mas eu preciso ir, Rachel! Volto mais tarde, tudo bem?
Katy saiu sem sequer esperar a minha resposta e foi para o quarto 304, ver como estava a Sra. Flink, a velha senhora em estado terminal de câncer.
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Após o almoço, ouvi o barulho da ambulância do hospital chegando alguns andares abaixo... Katy apareceu segundos depois sem fôlego, com algumas roupas de cama, indo em direção à cama vazia, para arrumá-la para alguém que estava chegando. Alguém que havia sofrido um acidente grave de carro, mas que teve apenas ferimentos leves.
O tempo passou e ninguém parecia chegar. Nem sequer havia movimento pelos corredores... Estava ficando confusa, por achar que tinha visto errado... Ou que nem sequer tivesse visto algo.
Logo que comecei a cair no sono, ouvi um barulho vindo do corredor... Três ou quatro segundos depois, entra Katy trazendo um homem em uma cadeira de rodas e ajudou-o a deitar em sua cama. Bill era um garoto jovem e atraente, com olhos escuros e cabelos mais claros... Sua pele era clara e seu rosto robusto. Estava ali porque esteve num carro com seu pai que foi atingido por um caminhão. O caminhão bateu exatamente no lado do motorista. Seu pai estava morrendo no centro cirúrgico e ele não fazia ideia do que estava acontecendo. Queria notícias, mas ao mesmo tempo tinha medo do que poderia acontecer.
- Rachel, este é Bill! - Katy estava entre nossas camas, mas deixando que pudéssemos nos ver - Ele vai ficar aqui por um tempo, então pode se acostumar.
- Ah. - eu não demonstrei interesse, mas dei um meio sorriso amarelado.
- Olá Rachel! - a voz firme de Bill chegou até mim arrepiando até meu último fio de cabelo. Tinha um tom desagradável de medo, mas ainda transmitia confiança.
- E aí? Bill, né? - eu disse, com minha voz tola, irritante e infantil - Diz aí, Bill, como veio parar aqui?
- Não sei direito... - sua voz me arrepiou de novo - Lembro de ter visto um caminhão e meu pai ao meu lado... Ei, Katy! - ele virou-se para ela - Tem notícias do meu pai?
- Ah, o seu pai? - a expressão de Katy mudou, mas ela parecia treinada a fazer aquilo - Bem, não sei dizer, Bill, me desculpe. Mas vou procurar notícias assim que puder!
- Obrigado, Katy. - ele sorriu. Um sorriso irresistível...
Quando Katy saiu do quarto com os pensamentos focalizados em como dar a notícia sobre um homem que agora já deveria estar morto, Bill se remexeu em sua cama e soltou um pequeno gemido.
- Tá tudo bem contigo? - eu fingi ser prestativa.
- Creio que sim... Estou preocupado com meu pai, ainda não tive notícias dele!
- Ele deve estar bem, evite pensar nisso!
- É, talvez ele esteja bem! - disse, virando-se para o lado. Entendi como o fim da conversa. Para ele.
“Por que você é tão frio?”, pensei, “Por que sua voz é cautelosa? Por que você tem tanto medo do que possa ter acontecido?”
Bill foi uma criança muito grudada ao pai. Sempre saíam juntos, sempre estavam juntos. George foi um grande exemplo para o filho e agora ele sentia como se tivesse chegado ao fim, como se aquela vida fosse coisa de sua imaginação. Era uma dor horrível.
Lágrimas saíam dos olhos de Bill e seus pensamentos não desligavam-se de seu pai... Queria poder ajudá-lo, aquela dor era insuportável... Era um sentimento de perda, de solidão... Mas talvez eu pudesse.
“Não é o fim. Não acabou. Essa dor não existe mais, você só tem boas lembranças dele. Você o amou, agora ele deve partir para que você possa ser como ele, seguir seus exemplos. E não sinta-se sozinho, você não está sozinho.”
Bill caiu no sono de repente, como se nada tivesse acontecido. Teve um sonho divertido com seus pais e sua infância, onde estavam acampando num lugar aparentemente conhecido... Era mais uma lembrança do que um sonho.
Mas então meus olhos começaram a pesar, lacrimejando. Meus pensamentos começaram a ficar distantes até se desligarem completamente.
Meu lugar estava diferente. Não estava tão frio e úmido como de costume e meus olhos podiam enxergar mais além. Era desconfortável, mas não desagradável. Estava mais claro e os espaços obscuros pareciam distantes... E mais atraentes... Mas também haviam lugares mais claros, mais brilhantes... Lugares próximos, que pareciam ter estado ali há mais tempo, sem serem notados. Eram lugares atraentes, mas minha mente queria conhecer o espaço obscuro e distante... Queria desvendar os mistérios que pareciam haver lá.