terça-feira, 5 de abril de 2011

Capítulo 5

Leisce

Por mais que desejemos fazer o bem, muitas vezes fazer algo errado torna-se inevitável. E pior que inevitável, estava tornando-se um vício para mim. Um vício bom, atrativo... Um vício em que eu me sentia poderosa, temerosa... Um vício diferente de todos os outros... Mas um dia você acaba fazendo algo bom. Mesmo que não tenha importância nenhuma pra você.

Mais uma vez eu estava deitada naquela cama de frente para o ambiente monótono do hospital. O Dr. Gruk não aparecia há algum tempo e Katy parecia bem desanimada. Sempre que podia, ela me incentivava a voltar para o orfanato, mas eu não ligava para o que ela queria. Eu precisava ficar ali.
- Bom dia, Rachel! - disse, em seu tom de desânimo.
- E aí, Katy? - tentei, sem sucesso, tornar a conversa agradável.
- Hoje o Dr. Gruk veio ao hospital... - seu olhar era triste e significativo - Ele se demitiu.
- O que? - apesar de estar em sua mente, a notícia estava sendo um choque para mim - Mas por quê?
- Ele não quis dizer muito... Mas parece que ele não está se sentindo bem aqui... Mas eu preciso ir, Rachel! Volto mais tarde, tudo bem?
Katy saiu sem sequer esperar a minha resposta e foi para o quarto 304, ver como estava a Sra. Flink, a velha senhora em estado terminal de câncer.


 Após o almoço, ouvi o barulho da ambulância do hospital chegando alguns andares abaixo... Katy apareceu segundos depois sem fôlego, com algumas roupas de cama, indo em direção à cama vazia, para arrumá-la para alguém que estava chegando. Alguém que havia sofrido um acidente grave de carro, mas que teve apenas ferimentos leves.
O tempo passou e ninguém parecia chegar. Nem sequer havia movimento pelos corredores... Estava ficando confusa, por achar que tinha visto errado... Ou que nem sequer tivesse visto algo.
Logo que comecei a cair no sono, ouvi um barulho vindo do corredor... Três ou quatro segundos depois, entra Katy trazendo um homem em uma cadeira de rodas e ajudou-o a deitar em sua cama. Bill era um garoto jovem e atraente, com olhos escuros e cabelos mais claros... Sua pele era clara e seu rosto robusto. Estava ali porque esteve num carro com seu pai que foi atingido por um caminhão. O caminhão bateu exatamente no lado do motorista. Seu pai estava morrendo no centro cirúrgico e ele não fazia ideia do que estava acontecendo. Queria notícias, mas ao mesmo tempo tinha medo do que poderia acontecer.
- Rachel, este é Bill! - Katy estava entre nossas camas, mas deixando que pudéssemos nos ver - Ele vai ficar aqui por um tempo, então pode se acostumar.
- Ah. - eu não demonstrei interesse, mas dei um meio sorriso amarelado.
- Olá Rachel! - a voz firme de Bill chegou até mim arrepiando até meu último fio de cabelo. Tinha um tom desagradável de medo, mas ainda transmitia confiança.
- E aí? Bill, né? - eu disse, com minha voz tola, irritante e infantil - Diz aí, Bill, como veio parar aqui?
- Não sei direito... - sua voz me arrepiou de novo - Lembro de ter visto um caminhão e meu pai ao meu lado... Ei, Katy! - ele virou-se para ela - Tem notícias do meu pai?
- Ah, o seu pai? - a expressão de Katy mudou, mas ela parecia treinada a fazer aquilo - Bem, não sei dizer, Bill, me desculpe. Mas vou procurar notícias assim que puder!
- Obrigado, Katy. - ele sorriu. Um sorriso irresistível...
Quando Katy saiu do quarto com os pensamentos focalizados em como dar a notícia sobre um homem que agora já deveria estar morto, Bill se remexeu em sua cama e soltou um pequeno gemido.
- Tá tudo bem contigo? - eu fingi ser prestativa.
- Creio que sim... Estou preocupado com meu pai, ainda não tive notícias dele!
- Ele deve estar bem, evite pensar nisso!
- É, talvez ele esteja bem! - disse, virando-se para o lado. Entendi como o fim da conversa. Para ele.
Por que você é tão frio?”, pensei, “Por que sua voz é cautelosa? Por que você tem tanto medo do que possa ter acontecido?”
Bill foi uma criança muito grudada ao pai. Sempre saíam juntos, sempre estavam juntos. George foi um grande exemplo para o filho e agora ele sentia como se tivesse chegado ao fim, como se aquela vida fosse coisa de sua imaginação. Era uma dor horrível.
Lágrimas saíam dos olhos de Bill e seus pensamentos não desligavam-se de seu pai... Queria poder ajudá-lo, aquela dor era insuportável... Era um sentimento de perda, de solidão... Mas talvez eu pudesse.
Não é o fim. Não acabou. Essa dor não existe mais, você só tem boas lembranças dele. Você o amou, agora ele deve partir para que você possa ser como ele, seguir seus exemplos. E não sinta-se sozinho, você não está sozinho.
Bill caiu no sono de repente, como se nada tivesse acontecido. Teve um sonho divertido com seus pais e sua infância, onde estavam acampando num lugar aparentemente conhecido... Era mais uma lembrança do que um sonho.
Mas então meus olhos começaram a pesar, lacrimejando. Meus pensamentos começaram a ficar distantes até se desligarem completamente.

Meu lugar estava diferente. Não estava tão frio e úmido como de costume e meus olhos podiam enxergar mais além. Era desconfortável, mas não desagradável. Estava mais claro e os espaços obscuros pareciam distantes... E mais atraentes... Mas também haviam lugares mais claros, mais brilhantes... Lugares próximos, que pareciam ter estado ali há mais tempo, sem serem notados. Eram lugares atraentes, mas minha mente queria conhecer o espaço obscuro e distante... Queria desvendar os mistérios que pareciam haver lá.

domingo, 20 de março de 2011

Capítulo 4

Cúram

Quando você recebe um cuidado especial, você se sente importante naquele lugar. E quando as pessoas ao seu redor parecem se importar com seus sentimentos sem que você precise controlá-las, você consegue se sentir... Feliz. Ou talvez perto disso. E quando você se sente feliz, você não quer que isso acabe. E faz de tudo pra que não acabe.

As paredes surradas do hospital pareciam mais paredes de hospício, mas eram elas que me viam acordar todos os dias, antes da Katy chegar pra me desejar um “bom dia” com um largo sorriso. Nos primeiros dias eu murmurava algo como “só se for pra você”, carrancuda, sem que ela percebesse, mas logo me acostumei ao lugar e às pessoas e comecei a responder com outro “bom dia”.
- Acho que o Dr. Gruk vai te dar alta amanhã cedo, Rachel... E você poderá voltar a ver suas amigas. - Katy parecia animada, ao contrário de mim.
- Amanhã? - meu tom era melancólico, com ar de quem implora o contrário.
- Você não gostou da notícia?
Nem um pouco.
Dei um meio-sorriso amarelado e Katy logo virou as costas para atender outro paciente.
Eu não quero voltar para aquele orfanato de merda, pensei, Aquelas pessoas que nunca se importaram comigo... Nem sequer vieram me visitar.
E a repulsa começou a surgir cada vez mais forte. Minha mente gritava de ódio e medo, meu corpo protestava tremendo desesperadamente e meus olhos lacrimejavam de agonia. Eu queria atenção.
- O que houve? Rachel, você está bem? - Katy apareceu de algum lugar que eu não tinha visto.
Eu abri a boca, mas não saía som. Eu não sabia ao certo o que dizer, mas precisava dizer algo. Eu não queria sair dali, eu não iria sair dali.
O tempo começou a passar e o tremor passou junto com ele. As lágrimas não chegaram a escorrer pelo meu rosto e logo eu sabia que minha voz também já estava normal. Nesse momento o Dr. Gruk já estava ao meu lado, medindo minha pressão.
- O que houve comigo, doutor? - minha voz doce e suave saiu da minha boca como se eu não tivesse ficado sem ela por um tempo.
- Não sei ao certo, mas parece que foi o estresse... ­- ele pareceu estar falando mais pra si do que pra mim.
- Isso é grave?
- Só se você tivesse problemas cardíacos, mas pelos exames parece que está tudo bem. - sorriu - Vou te passar um calmante e amanhã você já estará livre pra voltar ao orfanato!
- Eu não quero... - minha voz melancólica apareceu outra vez.
- Não quer o que? - ele parecia não prestar atenção em mim.
- Voltar. Voltar ao orfanato... Por favor - implorei -, eu não quero. Eu não quero. - e então eu encarei aqueles olhos verdes e confusos.
- Você não vai voltar... - disse, num tom diferente - Fique calma.
James Gruk saiu pela porta do hospital mais desanimado do que nunca, dando um soluço bem audível, com horríveis pensamentos correndo por sua mente. Todas as pessoas que ele não conseguiu salvar apareceram de repente em seus pensamentos, e tudo o que ele pôde fazer foi voltar a assistir e vivenciar cada momento doloroso, cada último olhar.
Eu não tinha esse direito.

E lá estava eu no meu lugar trancado, vazio e com um ar gélido. A rocha parecia úmida e meus olhos se fixaram em um ponto... Um ponto obscuro, que antes não havia sido notado... Algo que não deveria estar ali, mas estava. E chamava minha atenção mais do que qualquer outra coisa, me tentava a chegar até ele. Me tentava a descobrir o que estava lá... Mas algo me dizia que eu não devia, que não era seguro.

domingo, 13 de março de 2011

Capítulo 3

Rialú

Uma das coisas mais difíceis de ter um dom é quando você tenta ter um controle sobre si mesmo... Tentar não estar sempre na mente de alguém sem perceber, tentar não fazer alguém sofrer por um simples sentimento ruim, tentar não criar um caos só por aparecer no meio de uma multidão. Mas o foda é quando você quer fazer essas coisas... E você faz.

Continuava frio na capital da Irlanda, mas a chuva havia diminuído há uns dias... O céu ainda era nublado e o ar estava sempre úmido. Em certos pontos a grama parecia levemente esbranquiçada, porém era quase imperceptível e a neve não caia... Pelo menos não que eu tenha visto. No pátio do orfanato, crianças brincavam no chão escorregadio e casais adolescentes se encontravam escondidos em lugares cada vez mais improváveis, onde as monitoras ainda não haviam encontrado.
- Que roupa é essa, Rachel? - disse Jessica, com seu tom de desprezo de sempre.
- A minha roupa. Algum problema? ­- encarei-a.
- Ér... Problema? Não... Só queria comentar que ficou lindo em você!
Eu sabia que não era o que ela diria se eu não estivesse em sua mente. Mas eu estava... E não queria ser humilhada pela minha melhor amiga na frente de todas aquelas garotas. Garotas que agora me desprezavam por ter recebido um elogio e ao mesmo tempo queriam babar meu ovo por estar linda. Eu não queria que enchessem meu saco. E elas não encheram.
Chegamos ao refeitório na hora do café, quando encontramos aquela virgenzinha fingida da Laura. Falsa! Todos achavam que ela era uma santa, mas Jessica sabia que ela não passava de uma fingida... E no fundo eu sabia o porquê.
Quando éramos amigas, Jessica começou a responder minhas perguntas mentais com os próprios pensamentos, sim, já fomos amigas... Eu estava namorando o Ricardo. E ela morria de inveja. Eu sempre soube disso, estava estampado na cara dela! Era como se eu pudesse ler a mente dela, pensou, e então um dia a vadia aparece atracada com ele aos beijos no beco perto dos brinquedos infantis, lá fora. Eu denunciei, é claro, mas acreditaram na pobre Laura... E então eu virei a vilã.
E cheguei a acreditar que Jessica era a piranha... E no fundo ela fazia o tipo! Parecia autoritária, superior... Na verdade Jessica era superior, todos sabiam - ou deveriam saber... E eu podia fazer com que eles soubessem...
Mas a dor me consumiu. Eu perdi o controle da minha mente, quando de repente lá estavam todos os pensamentos daquele lugar... Todas as vozes, todos os gritos, todos os sentimentos... Pessoas borbulhando de raiva, outras gritando de felicidade. Eu não conseguia me concentrar em uma só mente, eu não conseguia me concentrar em nada!
Gritos de dor consumiam minha mente e, pela primeira vez, eram meus... Abria minha boca, mas o som não saía... Pessoas começaram a me rodear, mas não soube identificar seus rostos. A preocupação estava em suas mentes e eu não conseguia tirar da minha. Minha mente era deles, agora, e eu não tinha mais o que fazer. Então eu fechei os olhos.


Abri os olhos como se fosse a melhor coisa do mundo, aproveitando cada momento da claridade tomando conta do meu campo de visão. Aparentemente eu estava deitada... Meus olhos ardiam com a luz, mas era uma sensação de despertar de um sono profundo. Minha cabeça ainda estava doendo com a confusão e ecos de vozes pareciam zumbir aos meus ouvidos... Olhei para os lados para me localizar e logo vi uma enfermeira que vinha até mim.
- Que bom que acordou... A Sra. Frigda disse que você desmaiou no refeitório do orfanato, mas ninguém sabe o porquê. - a voz dela era calma, mas tentava esconder um nervosismo. Ela queria saber o que aconteceu, mas não estava com saco para aquilo.
Não venha me encher o saco agora!
- Ah, preciso ir agora, uma pena! Conversamos mais tarde.
Katy saiu do quarto do hospital num piscar de olhos, me deixando sozinha.
Então... Eu estava desacordada há dois dias e a Sra. Frigda resolveu me mandar para aquele hospital na primeira noite depois do desmaio... Ninguém sabia o que aconteceu... Isso era bom - ainda era um segredo.
O dia foi passando e aquele ambiente monótono me deixava numa angústia infernal... Ninguém chegava, desde que expulsei aquela sonsa. Algumas macas ao meu lado estavam ocupadas por pessoas com diferentes histórias, que me deixaram encantada e, ao mesmo tempo, nauseada. Mas eles ainda tinham um apoio. Alguém a quem pedir ajuda, pessoas que realmente se importavam com eles. Eles tinham pais.
E a noite caiu.

O lugar estava mais frio, mais doloroso. As vozes que ouvi durante dois dias continuavam gritando. A dor me devorava, como uma cobra atacando um rato. O lugar pareceu se fechar contra mim, mas aberto a outras opções. Mas o lugar era meu, que opções poderiam ser essas? Quem poderia estar lá?

terça-feira, 8 de março de 2011

Capítulo 2

Ina gcónaí leo féin

No mundo real é tudo diferente. Filmes e desenhos mostram pessoas que descobrem algum talento e logo são descobertas por alguém e encaminhadas a fazer a coisa certa... Pessoas que têm uma chance de aprender e descobrir o que está acontecendo consigo mesmas. Bem, comigo não foi assim. Minha vida foi feita por mim, eu mesma me criei, eu mesma me descobri.

O dia em Dublin amanheceu chuvoso, com apenas uns feixes de luz em certos pontos. Logo crianças começaram a levantar e descer pelos os longos corredores molhados para tomar seu café. Uma garota dos cabelos louros e cacheados (cercada por outras garotas) passou por mim, seguindo seu rumo ao refeitório com um ar superior.
Ridícula, pensou uma menina rancorosa um pouco à minha frente, de longos cabelos negros, ela pensa que é superior a quem?
- Bom dia! - exclamou uma Sra. Frigda correndo pelos corredores, atrasada, com seu tom frio de sempre.
O refeitório do orfanato era grande e arejado, com grandes janelas em dois de seus grandes paredões. Três mulheres estavam atrás de uma espécie de barreira, para servir a comida. Havia mesas pra seis ou sete pessoas espalhadas por todo o refeitório e quase todas estavam lotadas. Menos uma. E era para onde a menina dos cabelos negros estava indo.
Laura sentou-se primeiro. Logo em seguida sentei-me ao seu lado, e então ela me encarou.
- Quem é você? - disse em tom esnobe.
Eu não era boa nisso... O que eu tinha que fazer? O que eu tinha que falar? Não tinha o que falar. Laura piscou três ou quatro vezes e começou a encarar a guria loura. Nojenta.
- Nojenta! - disse Laura, com um tom estressado.
- O que? Quem? - minha voz doce e calma chutou pra longe minha falsidade, quase me convencendo de que eu realmente não sabia de quem ela estava falando.
- Rachel, você está bem? - Laura tinha um tom engraçado, de espanto - Jessica, é claro! Quem mais? Acredita que hoje eu acordei toda branca de pasta de dente? Aposto que foi ela... Ela sempre arruma alguma maneira de me irritar. Não agüento mais aquela vaca... Vadia!
Vadia, vadia, vadia! A raiva subia pra minha cabeça. Tomara que se dê mal, Laura desejou. Tomara que passe mal de dor.
E seu desejo foi crescendo na minha mente, como se tudo o que eu mais precisasse estivesse ali, na mente dela. Como se os pensamentos dela fossem meus, como se meus olhos enxergassem através daqueles olhos verdes e profundos... Eu odeio aquela vadia.
- Jessica? ­- gritou uma de suas vadiazinhas, quando ela parou de falar e começou a olhar pra todos os lados com os olhos marejados de lágrimas, com um ar de medo. - Jessica, você está bem?
E Jessica desmaia de dor. O desespero começou a crescer dentro de Sandra e Rachel como se Jessica estivesse morrendo. Laura olhou pra Jessica sem entender, mas com olhar piedoso. A correria começou. A Sra. Frigda não estava, então as mulheres da cozinha vieram correndo socorrer a pobre garota que estava jogada no chão.
Eu levantei. Não agüentava mais ver aquela cena ridícula. Se aquele ódio não era meu, por que eu fiz aquilo? Entrei em sua mente, ressuscitei as lembranças mais dolorosas e agora Jessica estava desmaiada no chão do refeitório. Por minha culpa.
Subi as escadas, passei pelos corredores e logo encontrei umas três meninas alegres, conversando e rindo sem motivo algum. Então uma alegria estranha, mas divertida logo tomou conta de mim. O assunto se tornou interessante e minhas novas melhores amigas eram muito mais divertidas que todas as outras que eu nunca tive.


Anoiteceu. Logo o quarto começou a ficar cheio de garotas faladeiras, fofocando. O assunto, é claro, era Jessica.
- Nunca vi algo parecido...
- Disseram que ela não se lembra de nada do que aconteceu.
- Aposto que ela fingiu tudo isso... Essa menina adora aparecer!
E as palavras começaram a ficar sem sentido algum. Eram apenas palavras avulsas, sendo jogadas pelo ar.

E lá estava eu, sentada de novo naquela grande rocha plana. O lugar era fechado, mas ao mesmo tempo ilimitado. Continuava vazio, mas novamente com algo estranho, diferente. Eu não estava sentindo nada, era como se tudo dentro de mim estivesse focalizado no ar frio daquele lugar estranho tão conhecido.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Capítulo 1

Cé hiad féin?

Depois de tudo o que vivi, aprendi a não confiar nos seres humanos... Ninguém é digno de confiança, acredite em mim! Mas durante os anos que passei espionando as mentes alheias, descobri que talvez existam duas pessoas nas quais você possa confiar... Dizem que tais pessoas possuem um amor inacreditavelmente incondicional... Mas eu não as conheço.

- Por favor, faça isso parar! - a mulher do rosto enrugado gritava com seu tom ridículo de dor.
- Eu já disse o que quero saber. Responda logo! - eu ouvia minha voz fria abafando os gritos da mulher, numa comunicação além do som.
Até que tudo parou.
- Olá? Quer saber sobre seus pais, querida? - a voz era a mesma, mas com um novo tom. Um grande sorriso estampava seu rosto e sua mente não sabia o que ocorrera há quase dez segundos, mas seu subconsciente assimilava minha presença à dor. Eu sorri e fiz que sim com a cabeça.
- Por favor, Sra. Frigda... Eu sei que essas informações são proibidas às crianças daqui, mas eu preciso saber. - eu sorri ao sentir a informação se aproximando.
- Não há problema algum em te contar sobre isso, não é? O que você poderia fazer?
- Nada, é claro. É só uma questão de curiosidade.
- Ainda me impressiono com sua educação, Srta. Blugg. Tens um modo tão carinhoso, mas ao mesmo tempo tão adulto, pra uma criança de 10 anos...
Blugg... Então esse era meu sobrenome! Rachel Blugg. A informação principal se aproximava na mente dela e me davam detalhes aos poucos, sem que eu sequer entendesse por quê... Eu sabia que nem todos podiam fazer o que eu fazia e que tinha algo a mais para que eu entendesse.
- Bem, sobre seus pais... - a Sra. Frigda continuou - Nós aqui no orfanato não guardamos informações dos pais, infelizmente. Mas me lembro de quando você chegou... A garotinha ruiva, de olhos claros... É claro que lembro! Nunca tive uma visão tão bonita. E não parecia só a visão, meus problemas me deixaram, naquele dia, e em seu lugar apareceu uma alegria enorme, sem motivo algum, só por olhar seus olhos... - e então sua expressão mudou, como uma espécie de dó - Mas seus pais pareciam sofrer... Eles não pareciam necessitados, como os das outras crianças, mas estar com você era como um sofrimento a eles...
- Então você não tem os nomes deles? - eu cortei seu assunto irritante sobre como meus pais resolveram me largar naquele lugar fodido.
- Infelizmente não. Desculpe.
- Então esqueça que tivemos essa conversa. Eu nunca estive aqui, você entendeu? - minha voz estava de novo além da comunicação sonora.
- Rachel! - gritou uma Sra. Frigda irritadíssima - O que a senhorita está fazendo por aqui a uma hora dessas? Vá para seu quarto imediatamente! - seus olhos ardiam de raiva e estresse.
Eu saí dos corredores e corri até meu quarto. Muitas garotas estavam fazendo piadinhas ridículas e contando o quanto estavam apaixonadas por um moleque qualquer. Minha presença sequer foi notada, como se eu estivesse ali há algum tempo. Ou como se nunca as tivesse conhecido. Deitei em minha cama, peguei um livro qualquer e comecei a ler, até que as luzes começaram a desaparecer, aos poucos, num sonho imerso em solidão que fazia com que eu me sentisse cada vez mais distante.

Era um lugar frio, sem portas nem janelas. Não havia campo, não havia árvores, havia apenas uma grande e plana rocha, onde eu estava sentada olhando fixamente pro nada. Era vazio, inexpressivo, apenas para relaxar. Eu já estive nesse lugar, em todos os meus outros sonhos, mas me sentia como se eu conhecesse aquele lugar cada vez mais, a cada noite, a cada sonho.


Prefácio


Mhaith leat mé

Ruiva, alta, olhos azuis claros, pele incrivelmente lisa... Isso o espelho pode me mostrar. Há algo por trás disso, você pensa. E você está certo. Eu não vejo o que o espelho me mostra, eu vejo além. Eu vejo o que os seus olhos vêem, eu ouço o que seus ouvidos ouvem, eu penso o que seu cérebro pensa. Eu não sou você. Você é que faz parte de mim, agora. Você e toda essa sua mente aberta, me mostrando tudo o que você não iria gostar de mostrar.
Eis um fato: ninguém é santo. E eu sei, porque eu penetro nos pensamentos mais obscuros e trancafiados das pessoas, sem que elas sequer notem.
Cruze meu caminho que eu passo a controlar sua mente... E você se torna meu. Posso te fazer mergulhar em suas piores lembranças, num pesadelo sem fim, mas também posso te trazer de volta os maiores prazeres já vividos por você.
Mas você está do lado de quem?